O Poema das Crianças Traídas

 O Poema das Crianças Traídas

                                                                              Mara Paulina Wolff de Arruda



O decoro e a paz na praça, como diria Virginia Woolf, foram interrompidos num sábado, mês de outubro, 1998.

Tudo começou na Avenida Getúlio Vargas, na cidade de Chapecó, SC, numa passeata de alunos das escolas  e universidade com Professores, profissionais da cultura e o poeta Lindolf Bell, numa manifestação em prol das Artes, chamando a atenção dos pedestres e do comércio, ás 18 horas.

Saindo do Hotel Bertaso crianças e adolescentes vestidos de anjos carregavam nas mãos uma vela. A luz espiritual. Logo atrás professores com velas acesas declamavam poemas.




Essa manifestação, para o fechamento do 1º.Seminário de Arte, promovido pela Galeria Arte e Antiquário trouxe Palestrantes e Exposições que movimentaram a cidade.  O objetivo era despertar a sensibilidade das autoridades em relação á expressão e valorização da Arte nas escolas.

O Poeta Lindolf Bell, um experimentado movimentador cultural de declamação pública, com seus 60 anos, seguia entre os participantes. Possivelmente foi a última atitude poética pública deste incansável poeta que faleceu no mesmo ano. 

Nascido em Timbó, SC, 1938, Lindolf Bell foi alfabetizado pela mãe que o ensinou a ler a Bíblia em alemão. O sentimento religioso foi mediador do seu trabalho poético. Formado em Ciências Sociais e em Arte Dramática fez da poesia uma bandeira para divulgar o saber poético e a Arte da palavra o mais próximo possível da população. Em mais de trinta anos ele declamou seus versos pelo país  em viadutos, ruas, estádios de futebol, escolas, portas de fábrica, boates. Participou de um projeto nos EUA, Iowa, fez espetáculos de poesia com objetos criados por ele e sua mulher Elke Hering, libertando o poema do “Livro fechado” como disse Nelly Novaes Coelho. É dele a ideia do movimento  Catequese poética.



Lindolf Bell declamando na praça em Florianópolis, SC


Filho do Modernismo de 1922 conheceu pessoalmente Cecília Meirelles, Manuel Bandeira, Carlos Drumonnd de Andrade, Ligia Fagundes Teles entre outras personalidades do mundo literário e da Arte, nas décadas de 1960-1980. A preocupação do poeta era que a poesia não fosse um panfleto, um jogo vazio de palavras. Para ele a poesia era ter a disponibilidade aos deuses interiores, aos seus fantasmas, estar em contato com o visível e o invisível do mundo. A religação da arte da palavra com o mundo real, vivido e engajado. Religar a poesia com a audição e a vida de cada um que o visse, lesse e ouvisse.  Em 1971, ao publicar Annamárias Carlos Drumonnd de Andrade se referiu com entusiasmo dizendo que o livro era “A mais importante obra lírico-amorosa em língua portuguesa dos últimos quinze anos”

Foi com as camisetas “Corpo-Poema” que Lindolf Bell integrou diretamente  o poema no corpo  dos trabalhadores. Sobre o corpo a poética escrita. Com as garrafas-poema  jogadas ao mar,   apostou no “acaso” da potência poética. Que o poema atravessasse o Atlântico era o seu desejo. Também é dele a ideia de esculpir em blocos de granito versos de poetas do vale do Itajaí. O poema feito escultura, nas intempéries do tempo, permanentemente aberto á leitura.

Como outros poetas que exerceram o seu talento pela palavra, Frederico Garcia Lorca e Pablo Neruda,  Lindolf Bell em defesa de ideais políticos e sociais mostra no poema das crianças traídas o universo do tempo vivido por ele.

 Antônio Cândido falando sobre  Direitos Humanos e literatura, em 1998, disse que “Todos nós sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização”

O fato que cada época e cada cultura fixam os critérios de incompressibilidade, que estão ligados à divisão da sociedade em classes, pois inclusive a educação pode ser instrumento para convencer as pessoas de que o que é indispensável para uma camada social não é para a outra. Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles. E, por isso, é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação. A literatura confirma e nega, propõe e denúncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver, incorporando-se em profundidade como enriquecimento difícil de avaliar pela sua posição política e humanitária.   

Lindolf Bell não mediu esforços para apresentar a poesia incorporando sua posição social-política. O engajado catequista declamou nos lugares comuns e incomuns levando a força da palavra, um gesto esperançoso, em plena era ditatorial de 1970 pois sua origem vem do mundo da filosofia de  Vico:  “Os primeiros sábios foram os poetas teólogos, sendo rudes em suas origens, em sua natureza, todas as coisas que de qualquer modo nasceram ou se empreenderam ; tais e não de outra forma se hão de estimar as origens da sabedoria poética”  

 

O Poema das Crianças Traídas publicado no livro Incorporação, 1974, e no Jornal Ô Catarina!  1995,  traduz o espírito do poeta.

 

“Eu  vim da geração das crianças traídas.

Eu vim de um montão de coisas destroçadas.

Eu tentei unir células e nervos mas o rebanho morreu.

Eu fui à tarefa num tempo de drama.

Eu  cerzi o tambor da ternura quebrado...”

 

Composto por setenta e nove versos O Poema das Crianças Traídas foi dividido em três partes. Os verbos usados no presente do indicativo como ele mesmo diz, denuncia. Denuncia  anos ditatoriais no Brasil, anos de poder  militar que nos deixou profundas feridas. Feridas essas na sua comunicação, no jornalismo, no corpo e lembrança das pessoas torturadas que tiveram parentes  mortas, desaparecidas. Faz pouco tempo que pesquisadores tiveram acesso a documentos relativos á esses anos de “chumbo”. Documentos que relatam a prisão, tortura e morte de jornalistas, pessoas ligadas de alguma forma com a cultura, mulheres e crianças.. É como  testemunha que o poeta faz sua poesia para não esquecer as atrocidades do seu tempo.

Contra os militantes do esquecimento, os traficantes de documentos e os assassinos da memória, contra os revisores das enciclopédias e conspiradores do silêncio... É possível que o antônimo de “esquecimento” não seja “memória”, mas justiça?[1] .

 

Segundo Adorno a literatura de Engagement  propõe um debate entre o que o artista quer de seu produto, e o mandamento de um sentido metafísico, testemunhando-se objetivamente.  Adorno faz menção ás obras de artistas que passaram pelo drama da guerra; o espanhol Pablo Picasso que diante da barbárie realiza a obra Guernica. Arte não significa aguçar alternativa, e sim, através, simplesmente de sua configuração, resistir à roda viva que sempre de novo está a mirar o peito dos homens. De modo que o objeto artístico – teatro, pintura, livro...- não tem objetivo algum. A obra artística  é o objetivo.

O que está em questão não são as influências, ou afinidades de espírito mas a complexidade do conteúdo poético, de fundo teológico que transparece na obra de Lindolf Bell. Tanto na escrita quanto na declamação dos poemas. Na performance, na busca do engajamento popular  dos poemas que escreveu e que denunciavam os acontecimentos.

 

“ Eu sou a geração das crianças traídas

Eu tenho psicoses que não me invalidam

Eu sou do automóvel a duzentos quilômetros por hora

Com o vento a bater-me na cara

Na disputa da última loucura que adolesceu

Eu faço de tudo a fonte

Para alimentar a não-limitação...”

 

Octavio Paz diz: O poema, ser de palavras, vai além das palavras, e a história não esgota o sentido do poema; porem o poema não teria sentido –nem sequer existência –sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta.”

A literatura é uma espécie de atuação construída. Apresenta um ritual que escutamos mais profundamente do que vemos. O  poema é histórico por ser produto social. Criação que transcende. É um testemunho histórico. Datadas mostram o tempo e a importância deste tempo.

O Estado de Santa Catarina está localizado no sul do Brasil. O sul do Brasil se construiu com a ideia de comunidade. As cidades povoadas por imigrantes alemãs, italianas, polonesas, portuguesas tem esse sentido de comunidade que aparece na poesia de Lindolf Bell. É a comunidade que pode mudar o local, que faz mutirão, que movimenta o comércio, a política, a escola, a cultura. Por isso se unir á comunidade de literatos em São Paulo. Por isso se unir a comunidade poética. E procurar outras.

 

 “Meu  coração é um prisma

Eu sou o grande delta dos antros

Os amigos mais autênticos

São  as águas que me acorrem.”

 

Lindolf Bell publicou onze livros publicados entre os anos de 1960 a 1990 e participou de inúmeras Antologias. Seu legado poético é de extrema importância para a História da poesia de Santa Catarina. Seus poemas foram traduzidos para o alemão, francês, italiano e inglês.

   A passeata saída do Hotel Bertaso terminou no calçadão  Benjamin Constant em frente a Galeria Arte e Antiquário. O Happy-hour é o ápice de uma declaração de amor á Poesia e a Arte. E o grand finale para ele (e para nós) que se deslocou quinhentos quilômetros de carro para reverenciar a palavra, expor o produto do seu trabalho e testemunhar o seu destino poético, ao promover a Arte, se completa com a  declamação de O poema das Crianças Traídas.



[1] Yosef Hayim Yerushalmi


Publicação do Poema Crianças Traídas no Jornal Ô Catarina!




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog