O testemunho na Arte de Di Cavalcanti
Mara Paulina Arruda
Senhores, atenção: Nos dias 13, 15
e 17 de fevereiro, os intelectuais e artistas Anita Malfatti, Mario de Andrade,
Oswald de Andrade, Rego Monteiro, Graça Aranha, Heitor Villa-Lobos, Victor
Brecheret, Menotti Del Pecchia, Ronald de Carvalho, Zina Aída, Monteiro Lobato
e Di Cavalcanti, no Teatro Municipal de
São Paulo promoverão o evento Semana de
Arte Moderna de 1922!
Semana decisiva para a arte
brasileira marcada por exposições,
concertos e palestras cujo objetivo era promover a produção e criatividade
multifacetada brasileira. Recebidos com vaias os artistas apresentaram as suas
obras.
A prosperidade na agricultura do
café promoveram o enriquecimento e a chegada das primeiras industrias em São
Paulo. Fábricas construídas por imigrantes italianos, alemães e franceses vão
se destacando na cidade. As casas são construídas com novos desenhos e
materiais. Abrem-se salas de cinema, inicia-se a produção de filmes brasileiros
no Rio de Janeiro e em São Paulo. Os artistas brasileiros vão estudar na Europa
e os imigrantes italianos expõem em São Paulo suas obras.
Diante deste movimento de arte a alta
sociedade paulistana é a principal
patrocinadora da Semana de Arte Moderna de 1922. A semana é apresentada em três dias. Um grupo
de artistas e intelectuais que se colocavam contra á cultura eletista. Os
participantes deste movimento tinham como objetivo reformular a ideia de que o
Brasil não tinha uma cultura própria e importava uma estética que não
correspondia a riqueza nacional. Dar visão
á um país tropical em suas manifestações culturais decorrentes da
riqueza multiracial de índios, brancos e negros. As palestras chamavam o público para libertar
o país da estética Européia olhando para
o Brasil na sua linguagem ‘original’.
Graça Aranha, Mario de Andrade e
Oswald de Andrade exaltavam a remodelação da estética no Brasil. Para eles o
país precisava se libertar do inoportuno arcadismo, academicismo e
provincianismo. Anita Malfatti a única mulher representada neste movimento
expos sua pintura expressionista que
teve duras críticas de Monteiro Lobato. “Paranoia ou mistificação?”. Di Cavalcanti,
o autor do cartaz da Semana de Arte Moderna- catálogo da exposição- trabalhava
como cartunista retratando o negro,os boemios
e a sensualidade da mulher brasileira, os destituidos pela sorte economica
também sofre críticas do público.
Abaixo as regras e moldes! Dizia o
Manifesto de 1922.
Prestes a completar cem anos, a
Semana de Arte Moderna de 1922, terá no ano de 2022 uma retrospectiva em São
Paulo!
Quem foi Di Cavalcanti?
Emiliano Augusto Cavalcanti de
Albuquerque Mello nascido em 1897, no Rio de Janeiro. Filho de um tenente do
exército que trabalhava na Guarda do Palácio Imperial, Didi, como era chamado foi
criado na casa do tio abolicionista José do Patrocínio (1853-1903), filho de
padre com a escrava. Casado com Maria Henriqueta de Sena Figueira,filha do
capitão Emiliano Rosa de Sena, avô de Didi. Em seus primeiros anos de vida cresceu ouvindo música clássica, literatura e vendo
a atuação de José do Patrocínio um influente político e jornalista. Segundo
Gomes,2009, José do Patrocínio era atuante, agressivo e polêmico, cuja pena não
poupava ninguém, nem mesmo os amigos e aliados republicanos. Comprou o próprio
jornal, Cidade do Rio, onde poetas
como Olavo Bilac e o engenheiro André Rebouças tiveram espaço.
Com 12 anos Didi entrou para o
Colégio Militar e começou a escrever versos
e fazer caricaturas. Em 1914 com a morte do pai precisou trabalhar como
caricaturista e ilustrador na Revista Fon-Fon. Ganha concursos de caricaturas e
inicia uma fecunda carreira artística.
Em 1917, Di Cavalcanti segue para
São Paulo. Inicia o curso na Faculdade de
Direito, faz amizade com Oswald de Andrade e Mario de Andrade que o
convidam para participar da Semana de Arte Moderna de 1922. Didi, como era
chamado, faz o cartaz e o catálogo. Participa ativamente do evento.
Em 1923 trabalha como correspondente do
Jornal Correio da Manhã na França. Conhece os cubistas Pablo Picasso e George
Braque entre outros artistas que se destacavam na arte que
estava no auge dessa época. Ao voltar da Europa se sente mais seguro para expressar
uma crítica na abordagem do ser humano e na representação da figura feminina
brasileira com suas curvas e sensualidade.
“Paris pôs uma marca na minha inteligência. Foi como criar em mim uma
nova natureza e o meu amor à Europa transformou meu amor à vida em amor a tudo
que é civilizado. E como civilizado comecei a conhecer a minha terra.”
Voltando ao Brasil Di Cavalcanti
filia-se ao PCB. Em 1930 participou da Exposição Colletion of Painting by Brazilian Artists em Nova York. Em 1932
fundou o Clube dos Artistas Modernos chamando a atenção de Mario de Andrade que
escreveu:
“ Di Cavalcanti conquistou uma posição única em nossa
pintura contemporânea... (...) mulatista-mor da pintura (brasileira) este é o
Di Cavalcanti de agora, mais permanente e completado, que depois de 11 anos vai
nos mostrando o que é.”
Em 1933 Di Cavalcanti publicou o Albúm A realidade Brasileira, uma sátira
ao militarismo da época. Escreveu sobre a obra de Tarsila do Amaral ressaltando
a relação entre a produção artística e o compromisso social. Foi preso por duas
vezes no período de 1933 a 1936 por três meses como getulista pela Revolução
Constitucionalista. Ao sair da prisão viajou para a França e Espanha. Amigo de Oscar Niemayer ao voltar da Europa pintou
As estações da Via-Sacra para a Catedral de Brasília. Também foi amigo de Oscar
Wilde, Jorge Amado e ilustrou os livros Gabriela, Cravo e Canela e A Morte e a
morte de Quincas Berro d’água.
A obra de Di Cavalcanti é
calculada em aproximadamente 9.000 trabalhos entre desenhos, pinturas,
caricaturas, ilustrações, cartões. Sua obra denuncia os aspectos políticos e
sociais do país numa vertente nacionalista, ligada a representação do cotidiano
do povo brasileiro.
Di Cavalcanti inicia sua vida
artística nos jornais do Rio de Janeiro. É nesse veículo de comunicação que ele
reflete sua inteligência crítica aos modelos políticos e sociais através da
caricatura[1].
Com essa via humorística e consciência satírica
ele expõe as mazelas da cidade e do país.
O que é a memória?
Ricoeur,2012, observa que a
tradição do olhar interior, citando Santo Agostinho, que minhas lembranças não
são as suas. A infância marca de diferentes
maneiras cada um de nós. Quem, o que, onde e porquê algo me tocou é do meu
espírito. Ele se deve á minha natureza e eu mesmo não consigo apreender tudo o
que sou. As imagens sensíveis e as
noções se acrescenta as lembranças das paixões da alma. Nos rastros que são a
nossa memória há o esquecimento de reserva que seriam as imagens fixadas no
nosso inconsciente. Hartog,2015, diz que a memória coletiva forma uma corrente
de pensamento contínuo pois ela retém do passado o que ainda esta vivo por
diferentes canais.
Os teóricos mostram que tanto o
particular como o coletivo são /fazem parte da nossa existência. Existência que
se mostra através das representações dadas á vida de cada um, a vida de trabalho como é o caso do artista Di
Cavalcanti.
Vattimo, 2017, com vistas a
reconstruir a possibilidade de um esquecimento criador mostra que Nietzsche pensou
na reativação de certas “forças eternizantes”:a arte e a religião. Pois,
segundo eles, o excesso de informações constitui a doença histórica dizendo o
que Heidegger disse que estamos na
imposibilidade de esquecer. A sociedade midiatizada bate o passado
continuamente através dos meios tecnologicos. O excesso de conhecimento
histórico é um traço característico de nossa condição humana.
Pelo bem e pelo mal a memória
particular e coletiva não pára de se destacar. A malfadada profecia da morte da
história e da morte da arte não conseguiu aniquilar o passado refletindo,
justamente, o contrário. O esquecido é
lembrado toda vez que uma imagem do meu
olhar espectador percebe o familiar da minha condição humana “pois, o que acontece é que a arte vive não
mais como uma atividade que faz obra, mas que, ao contrário, ou mais
amplamente, faz mundo[2].”
A obra de Di Cavalcanti:
A
pintura é um testemunho e um documento. A
memorialista Arte mostra nas obras dos artistas figurativos paisagens,
atos heroicos, retratos de pessoas ilustres, retratos de pessoas
desconhecidas, guerras, objetos, fauna,
flora e as mazelas de um lugar, de um país. No silêncio
de uma tela há o barulho ensurdecedor de crianças que correm, de mulheres e homens que falam, de chuva que
cai, do entra e sai num estaleiro, acordes de violão, um galo preso por um
menino. O quadro emoldurado contém um tempo vivido seja ele qual for. Se for um
retrato, o artista, como naquela brincadeira de criança que diz “Estátua”
eterniza um momento importante acontecido ali, por um acaso. Di Cavalcanti sabia
disso. É provável que tenha dito ao menino
que segurasse o galo, no seu colo, no calçamento próximo da favela onde
ele morava.
Em
um depoimento, 1954, para José Geraldo Vieira,2013, disse: “Nunca fiz abstracionismo porque sou um artista literário. Isto é,
escrevo com grafismo minha arte. Conto alguma coisa! Testemunho realidades!
Fixo dramas! Surpreendo horas, estados da alma, o povo, a rua, os interiores
pobres, etc.”
Por ordem cronológica a leitura de
quatro pinturas:
1.Cinco moças de Guaratinguetá. 1930. 92 x 70 cm. Óleo sobre
tela.
Nesta pintua Di Cavalcanti retrata
cinco mulheres. Quatro delas estão na rua. Uma segura uma sombrinha para se proteger
do sol. Vestem vestidos de mangas
curtas. É um dia quente. A quinta
mulher, no fundo do quadro, sonha apoiada na beira da janela. Segundo consta,
na década de 1920, alguns integrantes do modernismo tinham como ponto de
encontro o Circo de Abelardo Pinto Piolin. Di cavalcanti retratou a esposa do
palhaço Piolin: Benedita França Pinto e suas quatro filhas Áurea, Ayola,
Albertina e Ana Ariel. Benedita, nascida em Guaratinguetá, aparece à janela. O Circo
de Piolin esteve em 1918 em Guaratinguetá. O palhaço Piolin se apaixonou por
Benedita e fugiu com ela. Essa passagem torna-se histórica por conta da
marchinha de carnaval “E o palhaço, o que é? É ladrão de mulher!”
2.Moça com violões. 1937. Óleo sobre tela. 49,8 X 60,8
cm.
Nesse quadro Di
Cavalcanti mostra três mulheres que estão numa sala. Duas tem um violão em suas
mãos. A janela está aberta e avista o mar. Na mesa, um vaso de flores. Nas
paredes dois quadros e um deles é a bandeira do Brasil. Nesta pintura as
mulheres negras olham para o espectador. Há um ambiente intimista e lírico. Em
1937 Di Cavalcanti havia voltado da Europa e é possível ver alguns traços do
Movimento de Arte Fauvismo em voga nesta época.
3. Pescadores. 1951. 114,5 x 1,62 cm. Óleo
sobre tela.
Nessa pintura a
paisagem marinha é o fundo para o casal de pescadores. Sentados num primeiro
plano junto com uma cesta de frutas. O homem segura um peixe e a mulher não podemos saber se está olhando
para o espectador ou para um ponto fugaz. Tem nas mãos duas flores amarelas. Pessoas grandes, com mãos grandes. Trabalhadores.
Não é uma pintura delicada. A ensaísta Gilda de Mello Souza escreveu sobre o
pintor: “ Di é sobretudo o intérprete de
um mundo regido por rigorosa dicotomia, onde homens tem tarefas, mas a função
das mulheres é o amor. Suas figuras femininas, estagnadas num outro tempo (...)
Não direi que a visão plasticamente admirável de Di é folclórica, mas é
patriarcal e abafa o sentimento de culpa, assentando-o sobre o grande álibi do
Nacionalismo!”
4. Menino com galo
brincando. 1963. Óleo sobre tela. 80x64 cm
Nessa pintura o fundo do quadro é a favela. No
primeiro plano o menino segura firme com uma mão o galo branco; ele está
sentado no calçamento. Do lado direito outro menino está sentado com algo na
mão; o menino do lado esquerdo, de costas vê o movimento da favela. É um quadro triste.
Nenhum dos meninos sorri.
Concluindo
A década de 1920 ficou marcada por
um tempo eufórico no Brasil. A industrialização, a exportação do café e
ampliação dos serviços. Os bancos nacionais, minoritários no início do século,
tiveram grande expansão, passando a dominar no final do período. Essa expansão
do sistema bancário e a maior disseminação de suas relações com o Estado. Questões
econômicas e sociais impuseram também sua crescente institucionalização e
regularização. De uma sociedade onde a presença do imigrante estrangeiro havia
sido predominante até o fim da Primeira Guerra, a cidade crescia, a elevado ritmo,
a presença do migrante nacional, de mineiros e nordestinos, principalmente, que traria novas combinações sociais.
A
participação tímida do negro em outros setores da vida cultural reflete as
mudanças da vida moderna. Di Cavalcanti
é um dos expoentes desse tempo. Um artista que não fugiu de sua história. Foi
para São Paulo melhorar a sua vida e encontrou um ambiente fértil para as suas
inquietações e talento. Representou o
Brasil na XXV Bienal de Veneza, representou o Brasil no México e em Buenos Aires.
Fez palestras, recebeu prêmios, participou de Salões, pintou grandes murais, publicou a sua biografia, ilustrou livros,
escreveu artigos e abriu caminho para outros artistas negros: Clóvis Graciano,
1907-1988, Djanira da Motta e Silva,1914-1979, Heitor dos Prazeres,1898-1966. Sua
narrativa lírica e sensual mostra malandros, mulheres, candangos, crianças em
diferentes lugares, lugares que não fazem parte da vida da elite do seu tempo.
A obra não tem sentido fora do seu contexto. O
contexto está anexado à obra do seu autor. Em 15 de outubro de 1933 Di
Cavalcanti escreveu um artigo para o Jornal Diário Carioca sobre as relações
entre o trabalho artístico e a problemática social, a propósito da Exposição de
Tarsila do Amaral. Perceber como o negro foi representado neste tempo é
importante por tratar do contexto de uma população em processo de transição
econômica e social. O racismo, motivo de debates, discriminações e exclusões,
desde sempre, nunca foi abandonado por Di Cavalcanti. Antes mesmo do conceito
do racismo estrutural ele sabia que lutar por uma política em prol da Arte e
pensar sobre a condição do negro na sociedade é sinônimo de democracia. Di
Cavalcanti não negou o seu tempo.
Em
1976, o estado de São Paulo muda o nome da
rua 4, no alto da Mooca para Rua Emiliano Di Cavalcanti em homenagem ao militante
político, ilustrador, caricaturista e pintor que, com 79 anos, deixou uma obra que
reflete o testemunho social do negro brasileiro.
.
*O Instituto Tomie Ohtake em São Paulo na curadoria de Ivo
Mesquita numa Exposição inédita mostra que Di Cavalcanti produziu entre 1925 a
1950 vinte e três paíneis e murais. Entre as pinturas exibidas estão ‘Serenata
e Devaneio’ de 1927 que preconiza o primeiro mural modernista brasileiro.
O díptico ‘Samba e Carnaval’ de 1929 para o Teatro João
Caetano, no Rio de Janeiro está conservado.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ELUF, Lygia. Di
Cavalcanti. São Paulo: Folha de São Paulo. Instituto Itaú Cultural, 2013.
GOMES, Laurentino. 1889:
Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado
contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil.
São Paulo: Globo, 2013. 1ª edição.
HARTOG, François. Regimes
da Historicidade: Presentismo e Experiências do Tempo. Tradução Andréa Souza de
Menezes (et al.) Belo Horizonte:
Autêntica editora, 2015. 1ª edição.
HÚMER, Neuza Silveira.Di
Cavalcanti: vida e obra. CEDIC.Belo Horizonte,MG:2011
MANGUEL, Alberto.
Lendo Imagens. Tradução de Rubens Figueiredo (et al.) São Paulo: Companhia das
Letras[3].2001.
OLIVEIRA, Jô. GOMES, Lucília.
Explicando a Arte Brasileira. São Paulo: Ediouro, 2004.
RICOEUR, Paul. A
memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain François (et al.) Campinas,
SP. Editora Unicamp. 2007
YERUSHALMI, Yosef Haymin (et al). Usos do Esquecimento.
Conferências Proferidas no Colóquio de Royaumont. Tradução: Eduardo Alves
Rodrigues e Renata Chrystina de Barros. Campinas, SP. Editora da Unicamp, 2017
Periódicos:
Revista Economia.
Brasília, DF: V.13,2012. In Wilson Cano:
Transição rumo à crise e à Industrialização no Brasil.
Anais do Curso “A Semana de Arte Moderna de 22, sessenta anos
depois” (org.) Maria Celeste Paroni de Castro. São Paulo: Secretaria de Estado da
Cultura, 1984.
[1] O
caricaturista mantém uma relação de adversidade com o retratado, critica e
analisa, é uma relação de solidariedade com o povo que ri. O processo básico da
caricatura é o desvendamento da personagem... Quanto aos processos imitativos
empregados pelo caricaturista é possível notar que a caricatura não é
resultante da observação servil, mas do desvio do que é observável, do exagero,
da apreensão de movimentos de uma figura. Colaborou com a Revista Pirralho ao
lado de outros caricaturistas e em jornais.
[2] Vattimo,
p. 109
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