Raul e a Literatura

Mara Paulina Wolff de Arruda



    No final do ano de 1950 o chão batido das ruas do município de Lages começava a ser substituído por paralelepípedos. Com o fim do ciclo da madeira e a procura de alternativas para o desenvolvimento econômico a população da área rural  seguia para a área urbana a procura de trabalho e de melhores recursos na área da saúde. As madeireiras se instalavam na cidade criando vilas operárias que  mais tarde  tornaram-se bairros.     

Com o início da modernização, na serra catarinense, o rico fazendeiro lageano tinha como interesse a venda de pinheiros que constituía uma renda suplementar sem muitos custos e com grande rentabilidade. Os fazendeiros vendiam o pinheiro e as serrarias se encarregavam da derrubada e transporte. Era uma oportunidade de deixar o árduo labor com gado e a plantação nas fazendas. No início dos anos de 1960, a procura de recursos na área da saúde, ter acesso à variedade de mantimentos nos armazéns, comprar uma televisão onde o mundo começava a ser visto através de uma tela  foram preponderantes para a vinda dos fazendeiros com suas famílias no início do progresso da cidade. 

 

PEQUENA LIÇÃO DE HISTÓRIA LAGEANA

 

pinheiro

dinheiro

 

O pinheiro sinal de estabilidade por ser fixo nas primeiras terras fundaram as cidades. O pinheiro do poeta  refletido na troca da letra P por D se transforma na  crítica do mundo capitalista. As palavras na representação do acontecido. A literatura como forma de estruturar  o passado e o presente bem como o lugar. A consciência ecológica   transcendendo a consciência histórica. As palavras se convertem em testemunhos da história.

Para nomear a experiência da obra literária do poeta Raul Arruda Filho tem-se que falar do amor dele pela cidade. Transformando esse amor á cidade em metáforas  os relatos poéticos estão registrados em crônicas e três livros de poemas. Refere-se aos costumes, a paisagem serrana e a cidade. O engajamento dele com a cidade é a fonte de suas escolhas: livros, lembranças, invernos rigorosos, sonhos.

A era moderna é sinalizada por Roland Barthes e Maurice Blanchot que dizem que o moderno é uma ruptura com a tradição literária que se situa no fim do século XVIII e fins do século XIX e XX. Nesses períodos ocorre uma mudança de atitude e do criador frente ao texto estético literário bem como com as artes em geral.[2]  

Baudelaire, Rimbaud,  Pound e Mallarmé[3] são os poetas precursores dos anos de 1950 a 1990 na Europa. Os elementos estruturais do poema deixam pouco a pouco de ter o rigor da estrutura concebida pelo Romantismo, Simbolismo e Parnasianismo e passam a ter a visualidade do concreto da vida.  Em São Paulo, os poetas Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari[4] iniciam o movimento Poesia Concreta. São os irmãos Campos que traduzem as obras que se destacavam no mundo desenhando o percurso de uma “tradição da ruptura”. A revolução poética proporcionada por eles amplia as possibilidades da poesia. O aspecto verbivocovisual contempla o sentido e o significado de um novo fazer poético. A literatura suspende a fantasia  dando ênfase á palavra-objeto. 

Haroldo de Campos pesquisa na fonte antropofágica dos modernistas, especialmente na obra de Oswald de Andrade, a ruptura do verso tradicional. Desde a Semana de 1922 que os artistas insistem na proposição de que o Brasil, país multiétnico, precisava rever o modelo eurocêntrico e referenciar a representação artística brasileira. É com as ideias e críticas de Oswald de Andrade e de Mario de Andrade  que a literatura no Brasil  pesquisa outro viés  poético. Este ‘outro viés’ tem como base a criatividade, a diversidade e  multiplicidade  cultural da língua e linguagem brasileira.

Raul José Arruda Filho nasceu em 1959, em Lages, SC. Graduou-se em Letras, na Universidade do planalto serrano, Uniplac. Fez Mestrado e Doutorado em Crítica Literária na UFSC.  Escreveu para jornais locais e estaduais. Escreve no Blog ‘Raul e a Literatura’ Publicou três livros de poesia. É um jogador de xadrez. Como enxadrista participou de torneios pelo estado. Tem um tabuleiro em sua mesa de trabalho e, no aparelho celular, baixou um aplicativo onde joga com ele mesmo.

MARCEL DUCHAMP

entre a arte e o xadrez

a ilusão

talvez

 

O primeiro livro publicado por Raul Arruda Filho é de 1984. Composto por vinte e nove poemas. Um caderno em que o trabalho poético está datilografado. O conteúdo mostra a representação da cidade. Recheada de paradoxo intelectual, angústias, uso de um vocabulário antipoético unido a fatos históricos. Os poemas retratam as leituras– experiências- dos autores de seu tempo dito por ele mesmo, na contra capa.  

OPERÁRIO

                              se os meus dedos ficarem presos

                                      entre os tipos da máquina de escrever

                                        durante uma fração –instante- segundo

                                 depois da dor, retirarei um por um

                                         procurando não estragar as engrenagens

                                                 procurando não destruir os versos do poema

                                                                  que não será escrito

                                             nos

                                                meus

                                                  dedos

                                                                                      magros

 

Nas décadas de 1960 a 1990 o engajamento político, a experimentação, o convite ao jogo linguístico, a trapaça da língua, o desenho- um bloco-  grafias poéticas fazem parte do repertório de poetas brasileiros. Num tempo da máquina de escrever quando a modernização tecnológica se iniciava e a globalização ainda era uma faísca o poeta diz o que Tarsila do Amaral disse na pintura  “Os Operários” de 1933. E, mais, que na região serrana do estado de Santa Catarina, o seu próprio trabalho, no setor público, no cumprimento de horário e de outras tantas funções denuncia o mundo do trabalho. Nas trinta e nove páginas de ‘Um abraço pra quem fica’ o poeta demonstra a sua vivência na cidade com seus amigos, mostra o ambiente, as marcas, as relações, as desilusões.  Um abraço pra quem fica’ é o seu afeto á todos aqueles que amam, do mesmo modo que ele, a sua cidade.

Que é a literatura perguntou Jean-Paul Sartre.

Sartre diz que a pintura, a escultura e a música estão lado a lado com a poesia. “O homem que fala está além das palavras, perto do objeto; o poeta está aquém” E, sobretudo, há muito mais em cada frase, em cada verso, em cada livro. Conceitos políticos, comportamentais, ecológicos, poéticos.

O segundo livro ‘Cigarro apagado no fundo da taça’,1988. Composto por trinta e sete poemas. A ideia concretista se amplia  na crítica do lugar e de sua própria história. É o fim, mas não é o fim. Foi bebido o vinho. O cigarro foi apagado. Voltar para casa. Recomeçar. A linguagem se amplia ao usar nos títulos verbos do inglês, do alemão, do castelhano. O duplo sentido desses poemas faz justiça a sua política poética.

 

(PARA) PSICANÁLISE

MOTHERnidade

 

Frenkel, 2012, diz que a poesia passa a se perguntar sobre a matéria com a qual se faz, passa a tornar-se ela mesma  sujeito-objeto de suas criações. “Experiência arriscada em que a arte, a obra, a verdade e a essência da linguagem são questionadas e se põem em risco”. A escritura é um movimento constante, a fala é incessante, o poema- a literatura- não fala, ela é. E o poeta é o mediador que no pós-silêncio se arrisca.

 “Nesse sentido, a linguagem é a ausência da coisa; a palavra é uma falta fundamental, é um esvaziamento, é uma nulidade, é um fantasma. Ela é o estado de perda da coisa inicial que designa, ela é a morte desse nomeado e, ao mesmo tempo, é aquela que lhe concede nova vida.”

 

Terceiro livro, ‘Referências’ 1993. Composto por quatorze poemas, o poeta fica mais conciso. É de amor que ele se refere. Da experiência da viagem ao exterior do país e de si mesmo. Viajar para Londres, cuidar de Eliana e Dmitri.

 

pouco importa

os verdadeiros motivos

as razões

que fazem

do des/engano

uma dor in/suportável

 

sobrevive

a sensação

de quem

foi à fonte

e teve que voltar

-lentamente-

carregando baldes d’água

                     cheios demais

 

O poeta jornalista vai aos restaurantes da cidade para encontrar os amigos, falar de política, dos acontecimentos com parentes e conhecidos. Dias plúmbeos de inverno[5].  Visualiza, verbaliza e torna visível na sua escrita a sua experiência. “Assombrado e disperso é o coração do poeta” disse Antonio Machado. Nas ruas da cidade o poeta conversa. Nas ruas da cidade o poeta diverge. A sua cartografia poética  relata lugares, aponta alusões, conta parodias, soma trocadilhos.

Chul Han,2020, fala da estética do ferimento e da beleza como reminiscência.  Não se pode ver o outro sem se expor a um ferimento. É a tarefa do escritor metaforizar o mundo, ou seja, poetizar... E ela ocorre, ao contrário, como re-encontro e re-conhecimento’.

A cidade de ontem é uma senhora solitária nas lembranças perdidas nos campos verdes de Lages. As araucárias e a colheita dos pinhões  continuam sendo atrativos para quem visita a cidade. Os primeiros prédios construídos foram derrubados como os primeiros pinheiros de outrora. A cidade de hoje, numa revitalização sem fim é uma Lages que vive o mesmo panorama do mundo: a pandemia que nos impede de conviver com nossos familiares. Toda semana perdemos pessoas com as quais tínhamos laços de  parentesco ou amizade. Vivemos um luto interminável. A vida deixou de ser o assunto do dia. É da morte que falamos. Na sociedade do cansaço os lageanos também estão atingidos pelo domínio da tecnologia, do consumo, da apatia e do esgotamento político. Nas redes sociais o poeta tem seguidores na página do Facebook, no Instagran e, leitores do seu Blog “Raul e a Literatura”. Os livros publicados por ele, em letras datilografadas, estão noutro tempo. Os poemas escritos com letras minúsculas são a conversa no contínuo do dia, nesse estilo joyceano de ser: Se encontrar com e encontrar-se a si.

 Cercado de livros, ele, na sua biblioteca.



[1] Lembro da avó Henriqueta Arruda Guimarães, no tempo de criança, contando por que veio morar na cidade ‘por mais recursos médicos’

[2] Aguilar,2013

[3] Charles Baudelaire.1821-1867; Arthur Rimbaud.1854-1891; Stéphane Mallarmé.1842-1898 (citando os mais conhecidos)

[4] Haroldo de Campos.1929-2003; Décio Pignatari.1927-2012; Augusto de Campos.1931.  A Revista Noigandres foi o veículo de divulgação da Poesia Concreta caracterizada pelo aspecto verbivocovisual desenvolvido em são Paulo.

[5] Crônica ‘Minha Cidade’ Jornal Correio Lageano.1994

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