Raul
e a Literatura
Mara Paulina Wolff de Arruda
Com
o início da modernização, na serra catarinense, o rico fazendeiro lageano tinha
como interesse a venda de pinheiros que constituía uma renda suplementar sem
muitos custos e com grande rentabilidade. Os fazendeiros vendiam o pinheiro e
as serrarias se encarregavam da derrubada e transporte. Era uma oportunidade de
deixar o árduo labor com gado e a plantação nas fazendas. No início dos anos de
1960, a procura de recursos na área da saúde, ter acesso à variedade de mantimentos
nos armazéns, comprar uma televisão onde o mundo começava a ser visto através
de uma tela foram preponderantes para a
vinda dos fazendeiros com suas famílias no início do progresso da cidade.
PEQUENA
LIÇÃO DE HISTÓRIA LAGEANA
pinheiro
dinheiro
O
pinheiro sinal de estabilidade por ser fixo nas primeiras terras fundaram as
cidades. O pinheiro do poeta refletido
na troca da letra P por D se transforma na crítica do mundo capitalista. As palavras na
representação do acontecido. A literatura como forma de estruturar o passado e o presente bem como o lugar. A
consciência ecológica transcendendo a
consciência histórica. As palavras se convertem em testemunhos da história.
Para
nomear a experiência da obra literária do poeta Raul Arruda Filho tem-se que falar
do amor dele pela cidade. Transformando esse amor á cidade em metáforas os relatos poéticos estão registrados em
crônicas e três livros de poemas. Refere-se aos costumes, a paisagem serrana e
a cidade. O engajamento dele com a cidade é a fonte de suas escolhas: livros,
lembranças, invernos rigorosos, sonhos.
A
era moderna é sinalizada por Roland Barthes e Maurice Blanchot que dizem que o
moderno é uma ruptura com a tradição literária que se situa no fim do século
XVIII e fins do século XIX e XX. Nesses períodos ocorre uma mudança de atitude e
do criador frente ao texto estético literário bem como com as artes em geral.[2]
Baudelaire,
Rimbaud, Pound e Mallarmé[3] são
os poetas precursores dos anos de 1950 a 1990 na Europa. Os elementos
estruturais do poema deixam pouco a pouco de ter o rigor da estrutura concebida
pelo Romantismo, Simbolismo e Parnasianismo e passam a ter a visualidade do concreto
da vida. Em São Paulo, os poetas Haroldo
de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari[4]
iniciam o movimento Poesia Concreta. São os irmãos Campos que traduzem as obras
que se destacavam no mundo desenhando o percurso de uma “tradição da ruptura”. A
revolução poética proporcionada por eles amplia as possibilidades da poesia. O
aspecto verbivocovisual contempla o sentido e o significado de um novo fazer
poético. A literatura suspende a fantasia dando ênfase á palavra-objeto.
Haroldo
de Campos pesquisa na fonte antropofágica dos modernistas, especialmente na
obra de Oswald de Andrade, a ruptura do verso tradicional. Desde a Semana de
1922 que os artistas insistem na proposição de que o Brasil, país multiétnico,
precisava rever o modelo eurocêntrico e referenciar a representação artística
brasileira. É com as ideias e críticas de Oswald de Andrade e de Mario de
Andrade que a literatura no Brasil pesquisa outro viés poético. Este ‘outro viés’ tem como base a criatividade,
a diversidade e multiplicidade cultural da língua e linguagem brasileira.
Raul
José Arruda Filho nasceu em 1959, em Lages, SC. Graduou-se em Letras, na
Universidade do planalto serrano, Uniplac. Fez Mestrado e Doutorado em Crítica
Literária na UFSC. Escreveu para jornais
locais e estaduais. Escreve no Blog ‘Raul e a Literatura’ Publicou três livros
de poesia. É um jogador de xadrez. Como enxadrista participou de torneios pelo
estado. Tem um tabuleiro em sua mesa de trabalho e, no aparelho celular, baixou
um aplicativo onde joga com ele mesmo.
MARCEL DUCHAMP
entre a arte e o
xadrez
a ilusão
talvez
O
primeiro livro publicado por Raul Arruda Filho é de 1984. Composto por vinte e
nove poemas. Um caderno em que o trabalho poético está datilografado. O
conteúdo mostra a representação da cidade. Recheada de paradoxo intelectual,
angústias, uso de um vocabulário antipoético unido a fatos históricos. Os poemas
retratam as leituras– experiências- dos autores de seu tempo dito por ele mesmo,
na contra capa.
OPERÁRIO
se os meus dedos
ficarem presos
entre os
tipos da máquina de escrever
durante
uma fração –instante- segundo
depois da dor, retirarei um por um
procurando
não estragar as engrenagens
procurando não destruir os versos do poema
que não será escrito
nos
meus
dedos
magros
Nas
décadas de 1960 a 1990 o engajamento político, a experimentação, o convite ao
jogo linguístico, a trapaça da língua, o desenho- um bloco- grafias poéticas fazem parte do repertório de
poetas brasileiros. Num tempo da máquina de escrever quando a modernização
tecnológica se iniciava e a globalização ainda era uma faísca o poeta diz o que
Tarsila do Amaral disse na pintura “Os Operários”
de 1933. E, mais, que na região serrana do estado de Santa Catarina, o seu próprio
trabalho, no setor público, no cumprimento de horário e de outras tantas
funções denuncia o mundo do trabalho. Nas trinta e nove páginas de ‘Um abraço pra quem fica’ o poeta
demonstra a sua vivência na cidade com seus amigos, mostra o ambiente, as marcas,
as relações, as desilusões. ‘Um abraço pra quem fica’ é o seu afeto á
todos aqueles que amam, do mesmo modo que ele, a sua cidade.
Que
é a literatura perguntou Jean-Paul Sartre.
Sartre
diz que a pintura, a escultura e a música estão lado a lado com a poesia. “O homem que fala está além das palavras,
perto do objeto; o poeta está aquém” E, sobretudo, há muito mais em cada
frase, em cada verso, em cada livro. Conceitos políticos, comportamentais,
ecológicos, poéticos.
O
segundo livro ‘Cigarro apagado no fundo
da taça’,1988. Composto por trinta e sete poemas. A ideia concretista se
amplia na crítica do lugar e de sua
própria história. É o fim, mas não é o fim. Foi bebido o vinho. O cigarro foi apagado.
Voltar para casa. Recomeçar. A linguagem se amplia ao usar nos títulos verbos
do inglês, do alemão, do castelhano. O duplo sentido desses poemas faz justiça
a sua política poética.
(PARA) PSICANÁLISE
MOTHERnidade
Frenkel,
2012, diz que a poesia passa a se perguntar sobre a matéria com a qual se faz,
passa a tornar-se ela mesma sujeito-objeto de suas criações. “Experiência arriscada em que a arte, a
obra, a verdade e a essência da linguagem são questionadas e se põem em risco”.
A escritura é um movimento constante, a fala é incessante, o poema- a
literatura- não fala, ela é. E o poeta é o mediador que no pós-silêncio se
arrisca.
“Nesse
sentido, a linguagem é a ausência da coisa; a palavra é uma falta fundamental,
é um esvaziamento, é uma nulidade, é um fantasma. Ela é o estado de perda da
coisa inicial que designa, ela é a morte desse nomeado e, ao mesmo tempo, é
aquela que lhe concede nova vida.”
Terceiro
livro, ‘Referências’ 1993. Composto
por quatorze poemas, o poeta fica mais conciso. É de amor que ele se refere. Da
experiência da viagem ao exterior do país e de si mesmo. Viajar para Londres,
cuidar de Eliana e Dmitri.
pouco
importa
os
verdadeiros motivos
as
razões
que
fazem
do
des/engano
uma
dor in/suportável
sobrevive
a
sensação
de
quem
foi
à fonte
e
teve que voltar
-lentamente-
carregando
baldes d’água
cheios demais
O
poeta jornalista vai aos restaurantes da cidade para encontrar os amigos, falar
de política, dos acontecimentos com parentes e conhecidos. Dias plúmbeos de
inverno[5]. Visualiza, verbaliza e torna visível na sua
escrita a sua experiência. “Assombrado e
disperso é o coração do poeta” disse Antonio Machado. Nas ruas da cidade o
poeta conversa. Nas ruas da cidade o poeta diverge. A sua cartografia poética relata lugares, aponta alusões, conta parodias,
soma trocadilhos.
Chul
Han,2020, fala da estética do ferimento e da beleza como reminiscência. ‘Não se
pode ver o outro sem se expor a um ferimento. É a tarefa do escritor
metaforizar o mundo, ou seja, poetizar... E ela ocorre, ao contrário, como
re-encontro e re-conhecimento’.
A
cidade de ontem é uma senhora solitária nas lembranças perdidas nos campos
verdes de Lages. As araucárias e a colheita dos pinhões continuam sendo atrativos para quem visita a
cidade. Os primeiros prédios construídos foram derrubados como os primeiros
pinheiros de outrora. A cidade de hoje, numa revitalização sem fim é uma Lages
que vive o mesmo panorama do mundo: a pandemia que nos impede de conviver com
nossos familiares. Toda semana perdemos pessoas com as quais tínhamos laços de parentesco ou amizade. Vivemos um luto
interminável. A vida deixou de ser o assunto do dia. É da morte que falamos. Na
sociedade do cansaço os lageanos também estão atingidos pelo domínio da
tecnologia, do consumo, da apatia e do esgotamento político. Nas redes sociais
o poeta tem seguidores na página do Facebook, no Instagran e, leitores do seu
Blog “Raul e a Literatura”. Os livros publicados por ele, em letras
datilografadas, estão noutro tempo. Os poemas escritos com letras minúsculas são
a conversa no contínuo do dia, nesse estilo joyceano de ser: Se encontrar com e
encontrar-se a si.
Cercado de livros, ele, na sua biblioteca.
[1]
Lembro da avó Henriqueta Arruda Guimarães, no tempo de criança, contando por
que veio morar na cidade ‘por mais recursos médicos’
[2]
Aguilar,2013
[3]
Charles Baudelaire.1821-1867; Arthur Rimbaud.1854-1891; Stéphane
Mallarmé.1842-1898 (citando os mais conhecidos)
[4]
Haroldo de Campos.1929-2003; Décio Pignatari.1927-2012; Augusto de
Campos.1931. A Revista Noigandres foi o
veículo de divulgação da Poesia Concreta caracterizada pelo aspecto
verbivocovisual desenvolvido em são Paulo.
[5]
Crônica ‘Minha Cidade’ Jornal Correio Lageano.1994
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