O percurso da milonga




Mara Paulina Wolff de Arruda

 

 É provável que algum apresentador de televisão nunca tenha imaginado que alguém no recanto deste país fosse escrever um conto cujo um dos personagens que começasse à narrativa fosse ele, justo ele, um caixeiro viajante, um apresentador popular do Brasil. Talvez, quando ele descobrisse gostasse da ideia porque ele, um personagem da cultura de massa, trás escrito no corpo uma narrativa temporal. E, em seguida se queixaria na ousadia desse autor, no caso, uma autora que usou o seu nome em nome da literatura.

Elucubrações.

Ficção.

José Luís levantou-se do sofá. Desligou a TV. Pegou um cigarro e foi até a janela. Do décimo andar do prédio formiguinhas de um lado ao outro da rua apressados, carros estacionando, ônibus passando, a vida na loucura semanal.

José Luís era um homem cultural.  Não teve filhos. Não se casou. Quisera ser um lobo solitário.  No canto do quarto sobre a cadeira um acordeom. Herança de seu avô. Ajeitou o acordeom nas costas. Abriu a porta. Chamou o elevador. Fechou a porta. Cumprimentou os vizinhos.  (Na vida imaginária, no terceiro andar, agarrou à senhora do sexto andar.  Deu uns beijos nela. Constrangeu o porteiro) Ruborizou por cinco segundos, voltou à realidade. Acariciou o cão que dormia na entrada do prédio.

Planejou o trajeto de onde morava até o palco aonde iria se apresentar. Apresentações de fins de semana. Hobby. Quisera fosse.

Seguiu pelas ruas. Pensava nela. Pensava em Mariana, a atual namorada que saiu para trabalhar. Ela se mostrava cansada com o jeito dele. Ora, coisas de mulher ficar reclamando. Concluía.  Iria embora. Ameaças. Melhor seria nunca mais voltar, dizia. Ponderava, ela faria falta.

Ao atravessar a linha de pedestre encontrou Dionísio, um velho amigo que disse estar passando por dificuldades. Dívidas. Problemas em casa com a família. Não podia fazer nada. Nada fez. Balançou a cabeça. Sinto muito. Deu adeus ao velho amigo entrou numa padaria. Solicitou um café.  Aquele encontro não lhe fez bem.

Na mesa enquanto esperava o café veio a sua lembrança a conversa com o avô. Também foi caixeiro viajante. Qual era a idade que tinha? Não lembrava. Chegava da escola, se aproximava dele e ouvia suas histórias. Ouvia  ele tocar milongas.  Ele vendo o mundo.

As luzes dos postes se refletiram no mar. Os trabalhadores voltavam para casa. Véspera de feriado. O terminal rodoviário fervendo de gente. O acordeom pesando nos braços. Há anos fazia apresentações. Há anos via chegadas e despedidas como diz a música de Milton Nascimento. Anotava-as num caderninho. Era o que pensava no caminho, esbarrando numa e noutra pessoa até chegar ao “palco” com o acordeom pesando nas suas costas. A coluna dava sinais. Bico de papagaio.

Na rodoviária, ajeitou-se no cantinho da porta principal da saída dos viajantes. Um vai e vem de pessoas que chegavam e que embarcavam.

Palomas atravessando o ar.

A noite transcorreu e ele tentava se ajeitar naquele chão sujo e úmido. Os guichês abarrotados de gente. Para onde vão? Ele gostaria, também, de viajar. Tocou uma, quem sabe aparecia um parente, mais uma canção, talvez um conhecido da sua cidade; Seria maravilhoso se sua mãe chegasse; tocou outra canção. Se ao menos ele ouvisse o quicar de uma moeda na caixa que estava aos seus pés... Uma viva-alma chegasse para conversar. Indiferença. Que noite ruim, concluiu cansado.

O último ônibus da noite estacionou. Desceram os passageiros. Ele morto mal conseguia erguer o acordeom para fazer a apresentação derradeira. Todavia uma motivação interior dizia que ele tinha que caprichar nessa apresentação. Folheou o caderno de pautas para encontrar a mais linda das canções. Escolheu uma rancheira que seu avô amava. E deu tudo de si. Sua alma se mostrou nos acordes e volteios da música, fechou os olhos, transitou nas linhas imaginárias da pauta musical. Quando terminou a apresentação ao abrir os olhos viu-se cercado de um público que o aplaudiu. Timidamente agradeceu.

No meio da multidão um “Oiii” midiático, conhecido por ele e por todos aqueles que saiam do ônibus no Terminal Rodoviário Rosa Maria fez com que todos silenciassem. Era o dito apresentador pedindo passagem no conto. Estava à procura de novos talentos. Ele, o músico,  circunspecto e desarrumado não estava preparado para receber a inesperada visita. Embranqueceu. Esmoreceu.

Caiu duro no chão úmido da rodoviária.

 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Poema das Crianças Traídas