Rio Interior

                                                        Mara Paulina Arruda



No dia 12 de março do ano de 2000 Virna saiu de seu apartamento. 12º andar. Entrou no elevador com seu bichinho de estimação guardado na sacola. Tuti. Os olhos do bichano espiando o movimento do entra e sai das pessoas. Virna  fazia  tudo para que ele não fosse notado. Os vincos no rosto dela. Olhos azuis, sobrancelhas pintadas, lábios finos. Do signo de peixes e ascendente em aquário o lenço que tinha sobre os cabelos estampava as águas da sua vida.

Cumprimentou o guarda no Hall de entrada. Abriu o jornal. Chacoalhou as águas que corriam nas suas letras. O majestoso rio Uruguai havia sido marcado para morrer em decorrência das usinas projetadas para serem nele construídas. As notícias! O rio, uma entidade. Quando criança,  pés descalços, águas cristalinas, riachos, banhos de cachoeira. Virna voltava ao rio da infância. Correnteza. Voltas de barco. O murmúrio das águas. 400 milímetros de chuva. Enchente.  Linha de precipício.

Durante trinta anos exerceu a profissão de professora. Por que não escreveu contos? Por que não escreveu poesias? Protelou... Sua vida foi ministrar aulas. “Bom dia. Vamos começar pelo rio Amazonas. Boa tarde, no segundo bimestre o assunto é o rio Tietê. Boa noite, falaremos sobre as águas que banham o rio São Francisco.” Decepções com o contexto. Quisera o infinito e foi o finito que se mostrou.

 Tuti foi comprado num Petit Shop assim que recebeu o documento de aposentadoria. Um cachorrinho pequinês que era levado pela manhã a tomar um pouco de sol, receber um afago das crianças, encontrar com outros cães, correr na pracinha. O mundo se resumia nela e Tuti. Tuti e Ela. 

Dia 12 de março. Um dia  como outro qualquer. Tomou café.Esticou o lençol na cama. Estendeu a colcha. Afofou os travesseiros. Escancarou a janela. Tirou do criado-mudo uma caixinha com fotografias ensopadas. Estendeu-as no varal. Trancou a porta que dividia a área de serviço com a cozinha. Trancou-se por dentro. Arrumou-se para passear com Tuti. Ajeitou-o na sacola. Saiu.

No elevador encontrou o pescador. Quanto tempo! Braçadas de nadador. O mesmo pescador que um dia reivindicou a posse das suas águas. Fez passeata em prol do ambiente. Projetaram petições, seminários e ações pelo mundo. Sonhos perdidos na névoa do tempo. Ficaram as lembranças de corpos d’água vislumbrando outros rios: Nilo, Reno, Yangtzé, Mississipi... Nas cartas geográficas ele estava ligado ás usinas hidrelétricas.


Quando voltou para o apartamento encontrou tudo alagado. 

As águas que verteram das fotografias estendidas no varal não pararam de sangrar. Transbordamento. Um barco atracado na beira da porta. 

Ventania. 

Fugiu  da parte do rio que lhe tocava. 

Na escada tirou Tutti da sacola para que ele também corresse daquelas lembranças.

O que será que aconteceu no dia 12 de março do ano de 2000 em Pequim?  Nesse dia Virna caminhava com seu cachorrinho pequinês. Trazia um sorriso triste, filete do rio que vazou na sua vida.

 




 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Poema das Crianças Traídas