Filhos do vento

 


Para onde os pássaros seguem cada vez que o inverno chega? 

Ismael soube que eles imigram para os lugares mais quentes e, essa palavra imigrar fez sentido na sua vida, quando ele resolveu acompanhar Bernardo e Josué num caminho sem calendário, relógios e rumo. O contrário dos pássaros que voltam com a chegada do verão o objetivo dele era o de nunca mais voltar.

Palavras evasivas, naturalmente, justificavam os três amigos estarem juntos com seus segredos andando de cidade em cidade.

A sorte os deu uma bicicleta. Na verdade não foi bem a sorte, mas um homem que havia terminado o casamento. Ele doou as coisas para o primeiro que viu  para ir embora da cidade. 

Esse veículo fez com que eles passassem a cansar menos e, por um tempo foram felizes, alternando quem seguia a pé, quem ia de carona no assento da bicicleta, quem dirigia. E assim, atravessaram alguns estados do país.

No percurso deixaram inscrições nas cavernas urbanas. Eu os segui. Fotografei e anotei os sinais da passagem deles marcadas embaixo das pontes, nos recôncavos esquecidos. Indícios de subvida; um osso, uma camisa suja, sementes secas, um pé de sapato jogado no canto de uma estadia provisória.

Ismael estava na estatística dos desaparecidos. Ele sabia disso. Em São Paulo viu o seu retrato em frente de uma central de polícia impresso num banner. Estranhou ver a sua fotografia com a barba feita, os cabelos cortados, a roupa limpa. Não era possível!  Chegando mais perto viu seu nome escrito com mais outros desaparecidos. Viu que estava vestido com a camisa presenteada por sua mãe, no último aniversário que passou junto da família. Lembrou da mãe, em meio de um caminho azul de hortênsias, aconselhando-o; o peso dos anos marcando os seus ombros. 

Ali estava ele, no passado, se reconhecendo no presente.

Bernardo, levava uma gaitinha de boca no bolso do paletó. Com um brinco de argola na orelha esquerda ainda cultivava a cultura Hippie. Nas noites insones ele puxava o casaco surrado junto ao pescoço e tocava noite afora blues. A voz rouca marcada pela nicotina. Um historiador. Conhecia os mistérios da história mítica da Atlântida.  Era ele quem indicava a rota fictícia.

Quanto a Josué a família dele sabia que ele andava pelo mundo. Que resolveu se largar na vida após ter tido uma briga com o irmão mais novo. Surdo-mudo de nascença não conseguiu aprender algum ofício que o colocasse no mercado de trabalho. Foi noivo. O noivado foi rompido e o zunido de uma bala atravessou o seu coração. Durante muito tempo foi um morto-vivo.

A assistente social, no Paraná, tentou levá-los para um abrigo. Tentou enviá-los de volta á cidade de origem, mas não teve êxito. Toda vez que alguém tentava recolocá-los eles faziam meia volta e desapareciam.

Dom Quixote eles leram. Bernardo traduziu para Josué em Libras. 

No inverno, 1999, Bernardo resolveu ajustar as contas com Ismael. Não gostava das atitudes dele que se negava dividir o pão, os agasalhos, o dinheiro que conseguiam com o reciclável. Fazia corpo mole para deixá-lo viajar na bicicleta.

Ismael estranhou.

Um dia Bernardo não acordou bem. Olhou para o céu e sentindo uma garoa fina tirou o casaco, encostou a mochila numa árvore próxima do rio que atravessava a cidade na fronteira do Rio Grande do Sul. Conferiu a biblioteca de dois livros que carregava. Leu algumas frases. Separou a faca que tinha no bolsinho da mochila. 

 As folhas sobre o gramado. 

O sino da igreja assinalou o meio dia. A praça  da cidade estava vazia e Bernardo num impulso empurrou Josué e, em seguida, empurrou Ismael que se defendeu. 

Bernardo se protegeu aos golpes de Ismael com um escudo feito por um pedaço de madeira arrancado de uma construção.  

Josué ficou nervoso e tentou ler as frases, no movimento labial que eles proferiam. Caminhava de um ponto ao outro, sem saber o que fazer.

Ismael desejava acabar logo com essa briga sem motivo discernível, mas Bernardo insistia; ele era um mexeriqueiro e sua especialidade era  se envolver com problemas. Parou de falar ao sentir o corte da faca no punho. O sangue escorreu e uma névoa branca esmoreceu suas pernas.

Josué socorreu Ismael fazendo uma tipoia com um pedaço rasgado de sua camiseta e, seguiram viagem. 

Bernardo foi deixado para trás.

Um desconhecido viu a faca no chão. Tomou-a para si. Examinou e disse:

-Vão cuidar da vida de vocês em vez de ficar fazendo encrencas no caminho. 

Se não me engano eles não eram de se constranger.


 

 


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