Piano





A revista Saturday Evening Post trouxe na primeira semana do mês de julho de 1960 a matéria de um jornalista que conheci no tempo em que morei na Espanha. Nesse tempo fazia uma Especialização em literatura fantástica.

Conheci, por acaso, Eleandro, o jornalista. Casado com uma artista e leitora perspicaz chamada Marília. Os dois freqüentavam bares e cafés prestigiados pela elite do lugar.

Eleandro tinha um currículo interessante e gostava de entrevistar os artistas dos recantos mais distantes na Europa. E foi numa destas entrevistas que ele conheceu Marília. Isso eles me contaram num destes cafés que mencionei. Ela tinha os cabelos longos até a cintura e vestia-se com bom gosto.O dia que a conheci chamou a atenção o lenço vermelho que tinha sobre o casaco de lã bege. Uma mulher extraordinária. Olhos castanhos, sorriso franco. E, se me lembro bem, foi à personalidade forte dela que fez com que meu amigo Eleandro a conquistasse.

Como eu era inexperiente os acompanhei em algumas viagens e aprendi a fazer entrevistas e escolher o melhor ângulo fotográfico com Marília. Exibia minha máquina Nikon  que havia ganhado de aniversário. Iludia-me pensando que a máquina seria a solução para a minha inexperiência. Sabia o trivial sobre Cartier-Bresson e outros fotógrafos que apareciam no círculo jornalístico. Marília era comedida. Não fazia alarde de seu talento. Ao contrário aconselhava-me prudência em relação ao ofício e a vida. Os olhares, a sensibilidade e os detalhes dos artistas, pessoas comuns, trabalhadores em geral; fui apreendendo com eles. Vi Marília acionar o flash, de uma máquina muito mais simples que a minha com empenho, talento e obstinação. Numa tarde ela me disse: “A cidade é um museu.”

Num almoço na primavera, Marília me mostrou uma planta arquitetônica de uma cidade imaginária. Vinha construindo há anos! Ruas largas, planejadas para a passagem de carros, ciclistas e pessoas. Casas tombadas pelo Patrimônio Histórico e praças amplas.

Dois anos se passaram desde então.  Terminei a Especialização. Voltei ao Brasil. Eles ficaram por lá.

Numa tarde de 1979, no sul do país, o sol de inverno transitava entre as nuvens. Ventania. Os cabelos das pessoas despenteavam-se ao revés.

Eu também andava por ali. Numa lanchonete, próxima do mar, li um artigo sobre uma artista que Eleandro tinha entrevistado. Já não era mais o Saturday Evening Post. Eleandro, naquele momento tinha espaço num jornal local e escrevia crônicas esparsas. E essa entrevista fora publicada em um jornal de circulação estadual. A entrevista era com Joan Mitchell. No destaque da entrevista  ele descreveu o sol através dos muitos amarelos, laranjas e vermelhos que as telas da artista  retratavam. A exposição tinha como título Piano. E piano era o sol que pouco ela via no seu país de origem. Talvez por esse motivo essa exposição fosse um sucesso.

Ergui os olhos. O grasnar das gaivotas. Afastei o jornal para pensar. Pessoas chegavam e saiam da lanchonete como se fossem personagens. Solicitei ao garçom uma xícara de chá. O ranger da porta giratória do lugar anunciou a chegada de Eleandro. Estava na minha frente um homem maduro. Nós nos abraçamos. Convidei para sentar-se comigo. Ele aceitou.

Perguntei por Marília.

Eleandro, um pouco triste, passou as mãos nos cabelos grisalhos e disse que estava em viagem. Que os anos se passaram e muita água rolou desde o tempo que nos conhecemos. Marília viajara fazia uma semana. Havia ganho uma bolsa de pesquisa e saiu a fotografar as diferentes etnias pelo mundo. Seu projeto estava centrado nos Direitos Humanos.  

Por fim achei por bem trocar de assunto, falar da vida dele e da minha que, como sempre, era cheia de percalços.

Solicitei ao garçom dois cafés.

Saudamos o tempo em que nós nos conhecemos.

            Eleandro voltaria  para a Espanha. 

            Antes de sair disse:

- Marília casou-se com um fotógrafo desconhecido. 

 

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