O guri era bonito. Dizia ter um nome estranho: Kafka. Tinha os olhos castanhos. Foi o que Eneida me disse folheando um exemplar do Castelo.  No seu tornozelo a tatuagem: metamorfose.

Não é possível saber ao certo o que se passa na cabeça de uma pessoa que vive na rua quando começa uma conversa fazendo menção a Kafka. Presumi  porquê cargas d’água alguém, no início da manhã resolveu escolher um Cristo, no caso, eu, para torturar. Essa daí, toda semana, resolve passar aqui, inventando histórias. Tudo bem, disse para mim mesmo, vamos em frente.

Ela falava que era uma pessoa sem graça. Kafka tinha graça. Perturbadora. Silenciosa graça sem graça. Uma graça literária.

Eu não queria ouvir falar a respeito de Kafka. Segunda-feira! Já bastava o trabalho.  Mas continuava ouvindo Eneida falar sobre o Castelo, num palavreado de rua. Ela morava num daqueles cinturões de favelas do norte da cidade. Se não tinha atenção logo dizia: Erga os olhos deste conto e veja o que acontece perto de você.

Perguntei: Você precisa de alguma coisa? 

Ela ergueu os olhos do livro. Colocou-o embaixo do braço e amarrou os cabelos com um rabicó que tinha no pulso.  Prendeu-os e disse: Não. Não preciso de nada de sua loja. Encontrei esse livro no lixo daquele prédio ali. Um Castelo. E apontou para o maior prédio da rua. Queria saber se eu conhecia o autor. E ao ver minha reação jogou o livro no carrinho. Olhar estrábico. Falhas nos dentes. Puxava pela rua um carrinho de supermercado com metade papelão, metade garrafas pet, metade gente.

 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Poema das Crianças Traídas