Um acidente



Na hora em que Ivan freou o seu D20 nenhum outro carro passava na rua do prédio. Nenhum motociclista tirava um fio de um pedestre na beira da calçada. Nenhum aposentado passeava por ali com seu cãozinho de estimação. Quase todas as janelas dos apartamentos estavam fechadas.

 As poucas árvores que restaram da especulação imobiliária faziam parte da paisagem seca. E não havia  pássaro que se arriscasse a começar um ninho naqueles dias feios. O vento sibilava como num filme de terror.

Ivan enchia a cara de cerveja e afundava o pé no acelerador do carro. Ouvia uma voz a lhe perguntar: Para onde é que eu vou?

Marina, a vizinha do mesmo prédio, chegava de uma viagem. Surpreendeu-se com a freada do carro em cima dela.

Dias atrás ela havia descoberto a traição dele com a morena do prédio ao lado. A mulher ‘oficial’, digamos assim, nem imaginava que Ivan fazia, por fora, as dele. E essa traição  amedrontava aquele cara de pau, o seu vizinho. “Era só uma escapadinha de nada ameaçada por uma desgraçada, desconhecida, vinda sei lá de que profundezas, ele disse para o melhor amigo, o seu cumplice.” Foi o que Marina ouviu no corredor.

Se conheceram no aniversário da filha dele.   Ele soube que Marina foi, na juventude, uma secretaria executiva de uma empresa multinacional que após se aposentar virou ativista ambiental. Ela era responsável por separar o lixo reciclável do lixo orgânico no prédio. A separação do material reciclável dava trabalho ás pessoas do bairro. Ivan sabendo disso fez pouco caso do trabalho dela. Mal a cumprimentou na festa quando foi apresentado.  Irritava-se ao vê-la arrastar os sacos de plástico cheios daquele material sobre o cimento. Tipo de gente que ele queria distância.

Devo confessar que nunca gostei desse daí e que minha antipatia por ele nasceu no dia que o vi dando bolas de carne envenenadas para os gatos na rua. Um homem de corpo delgado, carregando uma sacola, parecendo um fantasma na rua. Eu vinha de uma reunião e fiz um cumprimento á ele ao qual não foi correspondido. No outro dia, a inspeção sanitária apertou a campainha de cada morador da rua para saber quem fez tamanha maldade.

Tarde plúmbea. Marina caminhava devagar após sair do táxi que a deixou do outro lado da rua. Estava feliz, pois seu projeto de criar uma ONG tinha sido aprovado. Pensava no que fazer quando o carro de Ivan atropelou seu corpo.

A última discussão que tiveram no corredor do prédio ficou marcada. A discussão transcorreu chamando a atenção dos vizinhos e da família: O motivo? A separação do lixo. Óbvio que Ivan tentou ridicularizar Marina. Frases ditas por ele em francês revidado por ela em alemão.  Um Bang-bang de palavras inúteis. Talvez Marina tenha  lembrado desta discussão.

Ivan fez cálculos matemáticos do espaço entre o carro dele e o corpo dela tão macio, perfumado, um cachecol enrolado no pescoço, parecendo com uma gata angorá. Regras e fórmulas foram calculadas em segundos. Sendo engenheiro ele raciocinava rápido. Ele não viu minha mãe. Ela assistia tudo da janela do nosso apartamento.

 Seu rosto se contraiu ao ouvir a resposta da pergunta que há anos fazia á si mesmo: “Para onde é que eu vou?” A resposta veio de cima: “Vai para onde o coisa ruim quiser!”.

 Acelerou.

Se ele titubeou, não vimos.

  

 

 

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