O Poeta  na Biblioteca

(Mara Paulina Wolff de Arruda)[1]

 


O poeta  Cruz e Souza tinha sete anos quando  a Biblioteca Pública de Santa Catarina foi criada por João José Coutinho, Presidente da Provincia de Santa Catarina. Era 31 de maio de 1854.

Aos quinze anos Cruz e Souza já se destacava  elegante, com os sapatos bem lustrados, na antiga rua do Príncipe. Chegava  no porão da residência do Sr. Fialho, conferente da alfandega onde  a Companhia Teatral de Moreira de Vasconcelos  apresentava a peça de Arthur Rocha  “A filha da escrava” O elenco trazia a atriz mirim Julieta dos Santos.

Com vinte e quatro anos  Cruz e Souza atuava em várias atividades. Como Poeta e escrevendo em periódicos  que circulavam por Desterro, redatoriando jornais, O Colombo- Periódico Crítico e Literário-, de curta duração (1884-1885)  O MOLEQUE; Periódico crítico e rebelde que sobreviveu apenas um ano (1884-1885) e Tribuna Popular (1881-1889), destacada folha literária.

Com aspirações literárias  Cruz e Souza juntamente com Virgílio Várzea[2] , numa reação contra os românticos, iniciou o movimento ‘Simbolismo’ no Brasil e, numa coletânea de 40 páginas, homenageou a pequena atriz Julieta dos Santos e a companhia teatral que se apresentava em Desterro.

Como todo jovem  ansiava por dias melhores e ascensão social. O Simbolista[3]  Cruz e Souza  aproveitava a passagem da Companhia de teatro e acompanhando-os conhece outras cidades do país.  Durante a viagem, nos intervalos das peças encenadas pela companhia,  subia no palco para declamar seus poemas.

Cruz e Souza  testemunhou o final do Império vivendo as vésperas do modernismo.

 O Brasil iniciava sua caminhada para o progresso econômico, independência política e conquista cultural que o colocaria entre as nações civilizadas do ocidente. A época era de transformações aceleradas. Período de grandes contrastes, os últimos anos do século XIX assiste no Brasil ao abalo de duas áreas básicas em qualquer nação: a econômica e a política. Quase ao mesmo tempo a abolição oficial do trabalho escravo (1888) e a extinção do regime monárquico, com a Proclamação da República (1889) [4]

O poeta buscou mobilidade nesta sociedade  fortalecendo as estratégias culturais. Entre  elas, o teatro, com atividades amadoras, desenvolvidas em pequenas sociedades dramáticas do Desterro[5], valorizando companhias teatrais que viajavam pelas cidades, apresentando suas peças abolicionistas, valorizando a cultura nesse tempo.   

Nascido na cidade de Nossa Senhora do Desterro, capital do Estado de Santa Catarina, no dia 24 de novembro de 1861, filho de Guilherme e de Carolina Eva da Conceição ele foi acolhido pela família do coronel Guilherme Xavier de Souza. Foi alfabetizado aos 4 anos e concluiu o curso de Humanidades no Ateneu Provincial.

“Ah! Plangentes violões dormentes, mornos,

Soluços ao luar, choros ao vento...

Tristes perfis, os mais vagos contornos,

Bocas murmurejantes de lamento.”[6]

 

Após viajar pelo país com a companhia de teatro entre idas e vindas ao Desterro ele publica poemas, textos críticos e jornalísticos. Era comum, nesse tempo, fazer evocações aos amigos e, Cruz e Souza,  os faz. Em 1893 Domingos de Magalhães publica dois livros seus: a prosa  Missal e os poemas  Broquéis.

Conhecido em Desterro como poeta e ilustre figura que transita pelo Rio de Janeiro o poeta casa-se com Gavita Rosa Gonçalves. Segue para a capital da República. Nessa cidade nascem e morrem seus filhos. Gavita  enlouquece e ele adoece por tuberculose. Viaja para Minas Gerais afim de se recuperar da doença, mas morre em 1898. Seu corpo é transportado de volta para o Rio de Janeiro onde é enterrado.

 

“Noites de além, remotas, que eu recordo,

Noites de solidão, noites remotas

Que nos azuis da Fantasia bordo

Vou constelando de visões ignotas”

 

Em 1979 o antigo Palácio Rosado[7], “Casa do Governador” passou a ser denominado Palacio Cruz e Souza e, em 2007,  os restos mortais de Cruz e Souza  é transladado do Rio de Janeiro para o então Museu Cruz e Souza ficando sob a responsabilidade do Estado de Santa Catarina.

 

“Sutis palpitações à luz da lua,

Anseio dos momentos mais saudosos,

Quando lá choram na deserta rua

As cordas vivas dos violões chorosos,”

 

A Biblioteca Pública de Santa Catarina é a sexta biblioteca mais antiga do Brasil e tem aproximadamente 120.000 volumes entre livros históricos, literatura catarinense, brasileira e internacional, periódicos e literatura infantil. Consta no seu patrimônio livresco exemplares dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX.

O texto ‘Interjeições da Lágrima’[8](Arthur Rocha) encontrado no periódico O MOLEQUE, na Biblioteca Pública de Santa Catarina foi para mim uma grata surpresa. Ter sobre os olhos e mãos um exemplar histórico  de 1885 me levou a rever um pouco da História do poeta  Cruz e Souza

Ao saber da morte de  Arthur Rocha[9], que ele havia conhecido na companhia  teatral e acompanhado por diferentes cidades do país, Cruz e Souza publica no O MOLEQUE, em 17 de maio de 1885,  uma evocação ao teatrólogo  “Interjeições da Lagrima (Arthur Rocha)”[10]

A evocação  para Arthur Rocha, nominando sua inteligência fina, superior que, igualmente a ele, tinha um magnifico cabedal literário e que morre aos vinte e nove anos foi a forma de demonstrar o seu pesar. O amigo e Dramaturgo era parte de um grupo de intelectuais negros livres do final do século XIX que defendia a abolição da escravidão. Cruz e Souza lamenta a morte de um defensor dos mesmos ideais libertários.

Para sobressair nessa sociedade em trânsito  foi preciso usar a linguagem da elite deste tempo. Linguagem apreendida no Ateneu Provincial. Vindo de uma boa formação escolar  registrou em forma de poemas, contos e artigos críticos-jornalístico os preconceitos e a exclusão racial vivida. Com seu vocabulário expressivo que aliteravam musicalmente as suas ansiedades, dores, sofrimento.

...Vozes veladas, veludosas vozes

Volúpias dos violões, vozes veladas,

Vagam nos velhos vórtices velozes

Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas...[11]

O universo do poeta era imenso[12] A resistência cultural e identitária de Cruz e Souza, o envolvimento com ideias abolicionistas, a estética Simbolista e a identidade fulgurante  deste ator  mostram o quanto ainda precisamos conhecer o poeta, escritor e persona  catarinense que  reverbera há 125 anos após a sua morte.

Encontrar um texto jornalístico ou poético na Biblioteca pode ser considerado  um acaso, um simples acaso. No entanto,   quando este texto é de autoria  de um poeta que é símbolo de um movimento literário e representa um tempo de escravidão e exclusão racial isso não é um acaso.

 

 


Poema publicado no Jornal Ô Catarina,n.12,Florianópolis, SC; março, 1995

 

 

 



[1] Arte-educadora. Especialista em História Contemporânea

[2] Poeta, Jornalista e Político. (1863-1941)

[3] O Movimento Literário Simbolismo surgiu no Brasil como influência para o teatro e as artes plásticas, além da literatura. A literatura simbolista possuía uma abordagem entre o mistério e o misticismo, com um estilo que baseava nas rimas. Os autores dessa época priorizavam a intuição ao invés da razão ou lógica, utilizavam recursos do imaginário e  fantasia. A estética simbolista era marcada pela musicalidade. O recurso linguístico muito utilizado era a aliteração. Os poemas apresentados por Cruz e Souza tem como característica  a tendência à sensualidade, o individualismo, um certo desespero e a preferência pela cor branca.

[4] Coelho, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura Infanto-juvenil: das origens indoeuropéias ao Brasil contemporâneo. 3ª edição. São Paulo: Quiron. 1985

[5] Elizabete Maria Espindola, p.227

[6] Cruz e Souza. Obra Completa. Poesia. V.1 p.454

[7] No século XVIII foi criada a Capitania de Santa Catarina e nomeado o primeiro governador, o brigadeiro José da Silva Paes. Junto a praça da Vila do Desterro um prédio de três seções e dois pavimentos para ser a nova “Casa do Governador” Durante mais de um século, o palácio passou por diversas modificações até que na mudança republicana uma grande reforma (1894-1898) adquirindo as características arquitetônicas atuais.  Em 1984 houve o tombamento do prédio.

[8] Cruz e Souza. Obra Completa. Prosa. V. 2.p.40

[9] Arthur Rocha 1859-1888,  poeta, dramaturgo e jornalista brasileiro. Fez parte de um grupo de intelectuais negros livres do final do século XIX que tomaram posições radicais, através da imprensa, na crítica à sociedade da época, defendendo a abolição da escravidão. Autor da peça de teatro apresentada no Desterro, A filha da escrava.

[10] Texto que pode ser lido integralmente na  Hemeroteca Digital Catarinense. Setor que faz parte da Biblioteca  Pública de Santa Catarina. Os Periódicos, desde o início de sua publicação no Estado, são digitalizados a partir de 1985.

[11] Versos do Poema Violões Que Choram... - janeiro, 1897-

[12] Vieira da Silva. In Reencontro Cruz e Souza. 1990.p.53

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